FERNANDO HENRIQUE CARDOSO |
“PENSAMENTOS DO ÚLTIMO PRESIDENTE COM P
MAIÚSCULO"
Empresto
nesta semana o meu espaço neste semanário aos PENSAMENTOS de um dos maiores
eruditos que o Brasil produziu no século passado, o sociólogo Fernando Henrique
Cardoso, Professor na Sorbonne, o nosso último Presidente que mereceu o título
com P maiúsculo. Aproveitem da sua sabedoria, e tenham todos uma boa semana:
OS
QUE ESTÃO VIVOS E OS MORTOS - No fundo estamos condenados ao mistério. As pessoas
dizem, eu gostaria de sobreviver além da minha materialidade... Eu não acredito
que vá sobreviver, mas, pelo menos na memória dos outros, você sobrevive. Vivi
intensamente isso com a perda da Ruth. Olhando para trás, é claro que ela
estava com um problema grave de saúde. Apesar disso fizemos uma viagem longa e
fascinante à China. É como se o problema não existisse. A gente sabe que um dia
vai morrer e no entanto vive como se fosse eterno. Depois da morte de Ruth e,
mais recentemente, de outros amigos, como Juarez Brandão Lopes e Paulo Renato,
eu me habituei a conversar com os que morreram. Não estou delirando. Os mortos
queridos estão vivos dentro da gente. A memória que temos deles é real. À
medida que vamos ficando mais velhos, convivemos cada vez mais com a memória.
Conversamos com os mortos. Por intermédio da Ruth, passei a lembrar mais dos
outros que morreram, dos meus pais, meus avós. Os que morreram e nos foram
queridos continuam a nos influenciar. O que não há mais é o contrário. Não
podemos mais influenciá-los. Eu não penso na morte. Sei que ela vem. Já senti a
morte de perto. Não em mim. Senti a morte de perto nos meus. E procuro conviver
com ela através da memória. Os que se foram continuam na minha memória e eu
converso com eles. Minha mãe, meu pai, minha avó, minha mulher, meu irmão, meus
amigos que se foram são meus referentes íntimos. Tudo isso constitui uma
comunidade – posso usar a palavra – espiritual, que transcende o dia a dia. Então,
a morte existe, ela é parte da vida, é angustiante, não se sabe nunca quando
ela vai ocorrer. Eu só peço que ela seja indolor. Não sei se será. Ninguém sabe
como e quando vai morrer. Pessoalmente, tenho mais medo do sofrimento que leva
à morte do que da morte propriamente dita. Se não é possível ter a pretensão
utópica de sobreviver como pessoa física, é possível ter a aspiração de viver
na memória, começando por conviver com a memória dos que se foram. Isso tem
alguma materialidade? Nenhuma. Isso é científico? Não é. Mas é uma maneira de
você acalmar sua angústia existencial. "Os
mortos queridos vivem dentro de nós. Os que morreram continuam a nos
influenciar. Nós é que não podemos mais
influenciá-los."
SENTIDO
DA VIDA - Aos 80 anos
creio que cada um cria o sentido de sua vida. Não há um único sentido. Isso é
muito dramático. Cada um tem que tentar criar o seu sentido. Nesse ponto os
existencialistas têm razão. É muito angustiante. Tem uma dimensão da existência
que é inexplicável. Ou você consegue conviver com isso no dia a dia sem apelar
para a transcendência – digo no dia a dia porque, de vez em quando, todo mundo
apela... – ou você tem que criar algum sentido para justificar, se não explicar,
o sentido das coisas. Eu criei, imagino que sim. Achei que devia ter uma ação
intelectual para entender e para mudar o Brasil. Na verdade é isso que eu
queria, mudar as condições de vida no Brasil. A literatura me influenciou
muito, sobretudo a nordestina, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Jorge
Amado. Depois as Vinhas da Ira, de John Steinbeck, sobre a revolta social na
América da Grande Depressão. Ou mesmo Roger Martin Du Gard com Os Thibault e,
já noutra direção, André Gide e, também, a metafísica de A montanha mágica, de
Thomas Mann. Esse caminho da literatura
me contagiou e me levou à política. Passei a vida inteira tentando entender
melhor a sociedade, os mecanismos que podem levar a uma sociedade mais decente,
como digo hoje, não apenas mais rica, e sim mais decente. Tem que haver, é
claro, algum grau de riqueza, senão a miséria, a escassez, predomina e então
não se tem nem liberdade nem igualdade. A escassez é a luta, a guerra pela
sobrevivência. Tem que haver um certo bem-estar material. Além disso, porém, é
preciso criar uma condição humana de dignidade, de decência, de aceitação e
respeito pelo outro. Tentei entender isso do ponto de vista intelectual e fazer
a mesma coisa do ponto de vista político. Então acho que dei um certo sentido à
minha vida. Esse sentido tem que ser dado por cada um. Não está dado que todos
tenham que ter o mesmo sentido e haverá quem nunca encontre sentido na vida e
fique batendo cabeça. "Quando se
vai ficando velho e, portanto, mais maduro, você tem que valorizar mais a
felicidade, a amizade, essas coisas que, no começo da vida, parecem
secundárias." Essa angústia vai ser permanente. Não tem solução. É
parte da condição humana. Não sabemos de onde viemos, não sabemos para onde
vamos. Tampouco sabemos por que e para que estamos aqui. O que não podemos é
deixar que essa angústia da morte e da ausência de um destino claro nos
paralise. Cada um tem que inventar sua resposta. Cada um tem que dar sentido à
sua vida. Ela não tem sentido em si. Esse sentido não está dado. Cada um tem
que construir o seu sentido. E vai sofrer para encontrar. Uma resposta está no
próprio convívio com os outros. Inclusive com os mortos. Talvez isso arrefeça
um pouco a angústia. Não se vive sem amizade, sem amor, sem adversidade. Quando
se vai ficando velho e, portanto, mais maduro, você tem que valorizar mais a
felicidade, a amizade, essas coisas que, no começo da vida, parecem
secundárias. Você continua querendo mudar o mundo, mas sabe que as pessoas
contam. Embora eu tenha sempre me definido como mais intelectual do que como
político, na verdade minha vida foi muito mais dedicada ao público. Isso vem da
minha ancestralidade, da minha convivência familiar. O sentido, para mim,
sempre consistiu em buscar fazer alguma coisa que mude a situação mais ampla do
que a minha própria. Nunca fui uma pessoa voltada em primeiro lugar para
alcançar o meu bem-estar. Eu tenho bem-estar. Diria que quase sempre tive
bem-estar. Mas esse não foi o meu valor. Mesmo em termos subjetivos, na ideia
de felicidade, nunca busquei com denodo a felicidade pessoal. Eu a tive de
alguma forma, nunca me senti infeliz. Eu me dediquei muito mais a ver a
situação dos outros. De uma maneira modesta, sem proclamar. Nunca andei
proclamando, sou solidário, sou do bem. Mas levei a vida inteira pensando no
mundo, pensando na sociedade, pensando nas pessoas, nos outros. O sentido que
dei à minha vida foi construir isso.
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Fonte: CARDOSO, Fernando Henrique – A Soma e o Resto: Um
Olhar sobre a Vida aos 80 anos
O autor é engenheiro, doutor em ciência da computaçao, professor
universitário, e pode ser contactado através do e-mail claudio.spiguel@gmail.com).
(PENSAMENTOS No 21/2012 – Jornal da Região
– ANO XIX, No 977 - 08/06/2012).
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