E foi, então, de Leningrado, recém re-nomeada ao nome original de Saint Petersburg, que eu deixei a União Soviética. Como eu disse no comêço desta série, em um regime comunista é a saída que é policiada, e não a entrada. E a minha saída teve nuances que provam isso muito bem, como descreverei mais à frente, mas não ainda nesta coluna, mas sim na Conclusão da semana que vem. Não percam! Antes, porém, Saint Petersburg, a terra da minha avó paterna, Dna. Eva, exerceu sôbre mim a atração natural da terra dos ancestrais, e merece a menção de mais alguns detalhes com os quais ela me privilegiou. Na semana passada comentei sôbre a minha predileção pela música erudita, e a final da competição entre os corais europeus. Pois bem, naquela semana de férias havia muito mais a ser admirado. Naquele 1991 completava-se o segundo centenário da morte de Wolfgang Amadeus MOZART (05 de Dezembro de 1791) e a cidade de St. Petersburg estava desafiando o regime comunista soviético opressivo, que julgava supérfluo e elitista o gosto pela música clássica, promovendo um festival de concertos com programas exclusivamente extraidos da obra extensa daquele famoso compositor. E pasmem!... a divulgação desses concertos era feita só de boca a boca pela população, inclusive datas e locais, para evitar a visibilidade ao regime opressor. O leitor poderá perguntar, mas e o Ballet do Teatro Bolshoi, e a Orquestra Sinfônica de Moscow, ou a própria Orquestra Filarmônica de Saint Petersburg, a orquestra mais antiga da Rússia (1882)? Pois é, essas organizações tinham suas operações permitidas e financiadas sòmente para apresentações FORA da União Soviética; concertos para o povo russo eram fortemente desencorajados pelo regime. O povo não tinha direito à boa música... na sua própria terra! Soube do Festival Mozart através dos professores da Universidade de Saint Petersburg, meus anfitriões, e uma noite êles me levaram a uma Igreja Ortodoxa em um bairro distante (eu não tinha a menor idéia de onde estava...), e lá eu presenciei um dos concertos mais significativos que eu assisti na vida. Não havia programa impresso, portanto eu não tinha a menor idéia de quem iria se apresentar. Já (mal) acomodado em um dos bancos da igreja repleta de gente, um dos professores me disse que nada menos que a Orquestra Barroca de Amsterdam havia sido admitida para ministrar treinamento a membros em potencial da Filarmônica local, e os membros da Orquestra concordaram em se apresentar CLANDESTINAMENTE, sem custo para a comunidade, para um dos concertos do Festival “fantasma” Mozart. O concerto foi nada menos do que divino. Compartilho aqui com vocês a sequência de peças de Mozart apresentadas: 1) Concerto para Oboé e Orquestra, K.314 em Do Maior; 2) Concerto para Fagote e Orquestra, K.191 em Si bemol Maior; 3) Concerto para Flauta, Harpa e Orquestra, K.299 em Do Maior; 4) Sinfonia #41, K.551 em Do Maior (Júpiter). Alguns anos mais tarde a Orquestra Barroca de Amsterdam lançou um CD com esse programa que hoje faz parte da minha coleção. Mesmo se não houvesse o CD para me ajudar a relembrar, o concerto foi inesquecível. Entre as peças havia manifestações rápidas de locais da audiência, no mesmo tom emotivo do Maestro Diretor da competição de corais anunciando o novo velho nome Saint Petersburg. Entendam, a própria existência daquele concerto era um desafio ao regime opressor que se abria, e a população culta fazia questão de assim se manifestar, em tom desafiante. Aqueles 20 dias em 1991 foram um período eletrizante para estar na Rússia. Para ser justo, alguns espetáculos artísticos internos eram permitidos, quando apelavam para um sentimento patriótico para com a “Mãe Rússia”. Por conta de um desses, eu assisti em uma outra noite u’a montagem da ópera Eugene Onegin pela Ópera do Teatro Bolshoi, música de Tchaikowsky, libreto de Shilovsky baseado na novela em verso de mesmo nome escrita por Pushkin. Foi um dos espetáculos mais bonitos que eu presenciei na vida, mas na audiência estavam apenas membros locais do “politburo” e suas famílias e convidados como eu; os professores da Universidade não faziam parte dessa audiência. Um dia meus cicerones governamentais agendaram uma visita a um cemitério local, segundo êles, para famílias de membros do “politburo”, especialmente profissionais. O lugar era impressionante, com longas alamedas arborizadas com as Árvores de Linden; os túmulos formavam como que um museu de esculturas que celebravam não a morte, mas a vida dos que lá jaziam. Ficou gravado em minha mente um túmulo esculpido em formato de um avião, com hélices de madeira, que celebrava um piloto da Força Aérea Soviética enterrado lá. Não resisti e perguntei aos cicerones onde estavam os escritores, os compositores... desconversaram. Aí no dia seguinte eu perguntei aos professores, e êles me indicaram um pequeno cemitério nos arredores da cidade. Fui lá... bem mais simples, túmulos comuns, jardins irregulares, cheios de ervas daninhas. Fiquei lá algumas horas, sòzinho, mas na companhia de Piotr Iylich Tchaikowsky, Modest Moussorgsky, Nicolai Rimsky-Korsacov, Mikhail Glinka, Leon Tolstoi, e Fyodor Dostoevsky... os pensadores, que chegaram tão alto que não mereceram notoriedade de um regime opressor que nivela sempre pelo nível mais baixo possível, sob o pretexto falso de igualdade. Deixo para a semana que vem a Conclusão com um ponto alto: minha visita ao Museu HERMITAGE, e finalmente a minha experiência de saída da União Soviética. Não percam! Boa semana a todos.
O autor é engenheiro, doutor em ciência da computaçao, professor universitário, e pode ser contactado através do e-mail claudio.spiguel@gmail.com). (PENSAMENTOS No 32/2011 – Jornal da Região – ANO XVIII, No 936 – 19/08/2011).
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